Transcrição Frustração, Privação e Castração são três desdobramentos/casos particulares da função da falta segundo Lacan. (A falta no Freud aparece em diferentes termos conexos como Emperium, Frustracion, Versagung, Castracion: estavam dispersos no texto freudiano). Lacan propõe uma leitura coordenada entre essas três dimensões da falta e a teoria da constituição do sujeito. A subjetividade é composta pelo Outro e por relações com o Outro (Linguagem/que dão suporte à linguagem: família imediata e também os nossos ancestrais). O Outro é uma categoria que envolve uma certa genealogia, compreende nossos mitos e constelações familiares, discursos culturais que no atravessam, ou seja, tudo isso que tira a gente de um entendimento mais familiarista do que seria o complexo de édipo. Esses três tempos do complexo de édipo, lidos pelo Lacan, vão envolver três entradas da noção de falta. Melanie Klein e os ingleses desenvolveram uma teoria muito interessante chamada teoria das relações de objeto. Para Melanie Klein haveria duas posições básicas para nossa relações com os objetos: a) Uma posição esquizoparanóide em que a gente cinde, projeta e aquilo que foi projetado volta persecutoriamente sobre nós. b) E a posição depressiva, que no fundo integra as partes fragmentadas ou cindidas do objeto e do Outro uma experiência envolvendo perda e simbolização. Lacan achava essa ideia muito interessante mas ele discutia o estatuto do objeto no interior dessas proposições. Ele dizia que a relação de objeto em psicanálise é principalmente relação com a falta de objeto. E essa falta de objeto não aparece toda de uma vez. Ela vai sendo subjetivada pela criança e nesse processo de subjetivação ela vai se tornando um sujeito. No primeiro momento a relação com a falta está determinada pelo que o Lacan diz Frustação. A frustação é a falta no imaginário, falta do objeto imaginário, e ela é processada, o agente dessa falta é a mãe simbólica. E o objeto dessa falta é o objeto real. Ilustrando: a criança muito pequena em que diante da indisponibilidade de um objeto ela supõe que este outro doador, este que pode então significar o seu grito, que pode dar nome para sua aflição, mas também esse que toca no seu corpo, que o acalenta, que o aconhega, todos esses gestos que envolvem então o posicionamento da criança em um determinado lugar estão baseados e vão engendrando a realização de que este outro além de ser uma imagem, uma pessoa, ele é um outro simbólico, ele representa o outro simbólico para essa criança. Mas ele incide nessa criança frustrando ela, dizendo que e fazendo que ela experiencie que existe um objeto, real, mas a mãe não o dá, e a mãe não o dá em presença, naquela hora, porque de certa forma esse objeto perdido está radicalmente perdido e não pode ser recuperado. Aquela primeira mamada, aquela primeira experiência de satisfação, é alucinada pela criança como uma ilação de desejo, um retorno a esse traço mnêmico de satisfação. Quando a mãe oferece o leite, oferece a sua presença, esse segundo encontro já não é o primeiro, e ele sempre deixa um resíduo, sempre deixa um resto, ele sempre é frustrante. A primeira experiência da falta, experiência imaginária, nos coloca diante da frustração e nos coloca diante de um outro que é sumamente caprichoso porque dele tudo depende, ele é unipotente, e esse modo de relação está articulado com a frustração. Isso reaparecerá no adulto: há muitos modos de relação com o outro que estão simplesmente baseado nisso, que o outro tem, pode, é... e eu não sou, e porque eu não sou é porque o outro não me deu, não me fez, não me coloca o objeto real que ele possui. Esse é um primeiro engano, engodo, próprio da dimensão imaginária. Esse engodo é posto em colapso com a passagem ao segundo tempo do édipo, com a mudança do estatuto da falta, em que a gente vai passar da frustração para a privação. A privação coloca em cena um objeto imaginário mas um agente que é o pai imaginário. Isso corresponde no drama edipiano àquele momento em que a criança passa por uma mutação: vinha bem, rindo, sorridente, de repente volta a urinar na cama, quer a chupeta novamente, e, principalmente, começa a ter pesadelos, acorda de noite, desenvolve medos estranhos. A criança começa a se dar conta de que este outro imediato (outro materno, função materna) tem limites, não é completo, não é todo, e daí ela hipotetisa e intui que existe um outro que seria "o outro do outro". Seria aquele que castra, "que limita essa que cuida de mim". "Então se ela não me dá o objeto que eu quero, é porque ele não deixa. Só que ele não sei direito quem é, qual sua imagem, do que ele é feito" (deslocamento do supremo poder de um para o outro). E por isso que surgem as fobias e os pânicos (tentativas de dar forma ao pai imaginário - caso do pequeno Hans ao ter medo do Cavalo-pai, transformar o cavalo de que tinha medo com o suporte/suplemento para o pai na sua função enquanto privador, privando a mãe de incorporar o seu produto, priva a criança, faz com que a criança seja introduzida nessa hipótese de uma falta real). Então para distinguir: a frustração é a falta de um objeto imaginário ("sei o que está me faltando") enquanto a privação envolve uma deflação desse saber ("eu não sei exatemente o que me falta ou do que é composto esse objeto que representa e dá suporte à minha falta"). Daí essa associação da privação com a angústia: esse é o objeto que o neurótico está aderido, não querendo ceder esse objeto para o outro, esse objeto que causa angústia mas ao mesmo tempo é fonte fundamental de gozo e satisfação inconsciente. Esse segundo tempo do encontro com a falta, a privação, engendra um outro modo de relações com o mundo. Ele permite que a criança comece a dialetizar sua relação com os estrangeiros, com o outro, com a sua própria angústia, com a própria criação de imagens, momento em que ela vai começar a se perguntar "mas afinal o que que é o real?", "o que que é imaginação?", "o que que é minha fantasia, e o que que é dado?", "o que é a verdade que os outros me dizem, e o que que é a mentira que eles me contam?", "o que é isso que acontece no meu corpo mas que muitas vezes não tem nome, não tem palavra, me toma como uma experiência desagradável?", tudo isso faz parte da privação. O terceiro momento (momento em que haverá a metáfora com o Nome-do-Pai), em que essas duas relações, minha relação com minha mãe, enquanto função materna, e a relação com o pai, enquanto Nome, elas vão se juntar formando uma metáfora. Esse momento de juntura ele vai dar origem a uma nova reposicionamento do pai (ele vai deixar de ser o pai imaginário que tem toda a potência, o pai ditador/ameaçador) e ele vai passar a condição de pai real. E, ao mesmo tempo, a criança vai se dar conta de que o falo, ele mesmo, não pertence a ninguém, e ninguém é o falo. A metáfora com o Nome-do-Pai permite entender que a falta é operador dos desejos humanos enquanto trocas. A falta é o que permite que o desejo se desloque, que o desejo seja sempre o desejo de outra coisa. Que ele não se afunde em um objeto. Que ele não se aliene em um objeto. Que o próprio desejo do sujeto não se aliene no desejo do outro pura e simplesmente. Tudo isso depende da castração nos seus efeitos separadores, ou seja, nos seus efeitos de subjetivação do desejo, de filiação, de identificação, em que a criança possa dizer: "olha, eu perdi esses objetos (este pai, esta mãe) mas eu posso encontrar equivalentes formais disso. Eu posso ter meu próprio desejo. Eu perdi meu Eu-Ideal, mas eu ganhei meu Ideal-de-Eu. A partir daqui eu levo uma experiência que é um orientador, um regulador para meus desejos (que são meus ideias: ideais simbólicos que geram efeitos imaginários). A partir daqui eu ganho a instalação de uma lei que já não me aparece como exterior, que vem de fora, representada pelo pai, médico, policial, pela figura que tem o poder. Mas eu então interiorizo a lei" (que pode aparecer nessa figura, às vezes patológica, do Super-Ego). Então a castração é simplesmente um operador para nossas relações humanas. Quando nosso desejo se aliena: é porque nós não queremos saber da castração. Quando queremos trocar o desejo pelo amor: é porque nós não queremos saber da castração. Quando nós nos relacionamos com a lei de uma maneira personalizada, imaginária: é porque nós não queremos saber da castração. A castração é esse limite, essa falta, que nos constitui como sujeitos capazes de desejo. Bibliografia recomendada: castração X privação X frustração, ver Seminário 4 (as relações de objeto) e 5 (as formações do inconsciente) de Jacques Lacan, que fazem essa releitura do complexo de édipo em Freud a partir da Teoria da Linguagem e do Desejo.
Acredito que ele tenha trocado os nome "frustração" por "privação", apesar dos conceitos estarem corretos. A privação antecede a frustração, diz respeito a satisfação de uma necessidade...
O fato das pessoas se relacionarem ou forçarem um relacionamento depois de um tempo pode incluir o medo da perda do que a pessoa oferece no caso sexo etc?
@@katiaflores7929"É um erro não partir da frustração, que é o verdadeiro centro quando se trata de situar as relações primitivas da criança" Sem. IV, p. 66
Professor Christian Dunker, seus vídeos, suas explicações claras, simples, bem humoradas acerca de temas complexos são um alento diante de tantas desinformacoes e falta de conteúdos de tantos canais que pululam nessa plataforma! Parabéns e um grande abraço.
Prof. Christian, parabéns novamente pela generosidade. Penso que este falando nIsso está entre os que mais me tocaram. Reconheço que ainda não é fácil acompanhar (talvez nunca o seja), pois como psicanalista ainda estou me aproximando do pensamento lacaniano. Todos os seus vídeos que eu vi até agora foram forte estímulos para o aprofundamento. Obrigado
Christian, vc como meu imaginário do Outro... não tenho palavras para agradecer seu carinho em tornar disponível e acessível seu conhecimento... sua ajuda (tentativa) em nos ajudar a simbolizar (tentativa). Uma vez mais: OBRIGADO!
Muito interessante este assunto,amplo e a privação/frustração esta´relacionada com conflitos graves que podem muito bem serem confrontados e liberados.Ciència muito bonita a psicologia,essencial conhece a ti- mesmo.
Parabéns pelo canal; acompanho todos os vídeos. Você poderia falar sobre a relação dos adolescentes com o álcool? É a droga mais disponível, há uma pressão social tremenda pro abuso etc e como isso se relaciona às questões do sujeito com a família, com as proibições e transgressões, com desejo, libido etc e quais as atitudes comuns tomadas pelos pais para lidar com a situação são menos ou mais adequadas para a superação de um ciclo vicioso. Obrigado!
Christian, seria possível desenvolver e estabelecer uma relação entre a intensificação dos sintomas sociais e o declínio de autoridade nos dias atuais, devido a mudanças nas configurações subjetivas decorrentes das novas estruturas familiares (horizontais e não mais verticais , de certa forma) e se isso tem relação com os discursos de Lacan.
Olá professor Dunker! 🏛🛋🕎♆ Gostaria que você comentasse sobre a ética do desejo e em que isso poderia afetar nas escolhas em nossas vidas. As escolhas sobre aquilo que se ama ou aquilo que se deseja por exemplo. Obg!!!
Oi, Dunker. Gosto muito de seus vídeos e os acompanho um a um. Seria possível você fazer um vídeo explicando o estádio do espelho, assim como vez com o grafo do desejo. Parabéns pelo trabalho maravilhoso que está fazendo, que é um movimento de tornar a psicanálise acessível. Grande abraço,
Prof. Christian, parabéns pelos vídeos! Sigo acompanhando o canal que é uma ótima ferramenta para complementar os estudos! Poderia falar sobre as psicoses ordinárias e as formas de sofrimento contemporâneas?
Boa tarde sofro de transtorno bipolar e à 2 anos atrás comecei um tratamento com um psiquiatra e dois meses despois me descubre apaixonada por ele, só que estava esperando emagrecer kkk para contar para ele, quando tomei coragem de contar não o encontrei mais pois ele teve que ir embora aí cai em depressão outra vez.
Olá Christian Dunker, seus vídeos são fantásticos. Assisto constantemente e compartilho com colegas da APC em Curitiba, onde sou psicanalista sócia. Poderia fazer um vídeo sobre "Angústia na contemporaneidade". A angústia sinaliza a emergência do desejo do Outro, entendido no registro do Real. Assim, de que modo a inconsistência do Outro pode levar o sujeito a perder sua condição de entidade simbólica, fazendo com que este entre em angústia? Desde já agradeço! Grande abraço
Ola professor Dunker Gostaria que você comentasse sobre o filme ''LEON O PROFISSIONAL'' se possivel, é uma obra muito interessante, desde já obrigado, parabéns pelos videos, explicativos diretos e claros que sempre produz.
Christian, como podemos pensar a direção da cura para casos de "dependência afetiva"? essa pergunta toca as relações de certas mulheres com o "homem-devastação", a violência doméstica, e outras queixas amorosas. Muito obrigado, abraço!
Christian, a queixa de sofrimento - geralmente da posição feminina diante da relação construída ao lado de um homem machista - é a repetição de um gozo, fantasia e busca da satisfação de desejo inconsciente e/ou embrulhos do desejo? Abraço e obrigada por aulas e esclarecimentos que tanto desejamos.
Adoro seus videos, professor você poderia falar da questão do desejo no anti édipo do deleuze e guattari e o desejo para lacan? vejo que você sempre tem na sua mesa o livro do deleuze e do guattari do anti edipo. abraços
Olá prof. Como o conceito de "deprivation" de Winnicott pode complementar esta posição? visto que como dizia André Green, demais é demais.. ou seja, há crianças cuja falta, ausência e separação foram demais.. não constitutivas.. mas alienanantes.
Oi Professor, gostaria de saber se tu poderias falar sobre os tipos de resistência possíveis em Freud , especialmente a resistência do recalcamento. Obrigada ! Abraço, Louise (Porto Alegre RS)
Olá professor, acompanho sempre o canal e aprecio muito. Recentemente vi um evento cujo nome era Psicinálise e misoginia - história e histeria. O que o senhor pensa disso? A psicanálise é misógina?
Eu achava que o primeiro momento é de privação, depois frustração, depois castração... Pq a privação o objeto está ali e não está acessível... Já a frustração o objeto está acessível mas não disponível..
Ola professor. Tenho uma dúvida a respeito de pessoas surdas. No caso das estruturas, sendo um surdo com esquizofrenia, que tipo de "voz" ele escutaria? De linguagem de sinais?ou uma voz que no senso comum é da consciência? Certa vez em um trabalho que estive atendi uma adolescente surda, meu trabalho era resgatar a história da adolescente que estava perdida em SP, ela tinha certo grau de letramento,mas era notável que na escrita era ausente o uso de artigo e adjunto, em parte foi uma comunicação como o jogo "imagem e ação ". Então, como se da a alucinações em pessoas surdas?
O que faz uma criança sentir ódio por uma pessoa que o rejeita e esse sentimento se converte em desejos sexuais. sentindo uma paixão ou "amor" por aquele que o rejeitou ?
Olá Christian, interessante seu modo de transmitir conceitos da psicanálise em redes sociais. Porém, gostaria de alertar que você cometeu alguns erros quanto aos três tempos da falta de objeto: o correto é privação, frustração e castração e, não como você mencionou, frustração, privação e castração, erro que lhe fez atribuir à frustração algumas questões referentes à privação. Pode parecer um preciosismo teórico, mas como na psicanálise a teoria está sempre muito atrelada à prática, é importante ter o cuidado com a transmissão do saber que aí se coloca. Abraço.
Muito bons seus vídeos. Fiquei com uma dúvida só, a respeito da castração: Caso a criança não passe pelo processo de castração de forma completa e saudável, é possível que isso aconteça de alguma forma na vida adulta?
Quando a criança não passa pelo processo na infância ela sofre as consequências disso na adolescência, por isso muito adolescentes vivem momentos de crises e surtos.
@@juanterenciani7247 fiz essa questão a 4 anos atrás kkk. Hoje conheço bem mais Lacan. Mas quando fiz a pergunta estava me referindo a Jung: para Jung os sonhos são capazes de uma comunicação com o consciente, é um outro que fala de modo independente da consciência. No caso de Lacan a resposta disso vai ser dada pela estrutura da linguagem e do processo de significação. Mas em resumo: não era uma pergunta da qual eu já sabia a resposta...kkk
Olá professor. O senhor poderia falar um pouco sobre a direção de tratamento na esquizofrenia, tratando sobre o processo de paranoização a luz de um caso clinico? Um abraço.
Transcrição
Frustração, Privação e Castração são três desdobramentos/casos particulares da função da falta segundo Lacan. (A falta no Freud aparece em diferentes termos conexos como Emperium, Frustracion, Versagung, Castracion: estavam dispersos no texto freudiano). Lacan propõe uma leitura coordenada entre essas três dimensões da falta e a teoria da constituição do sujeito.
A subjetividade é composta pelo Outro e por relações com o Outro (Linguagem/que dão suporte à linguagem: família imediata e também os nossos ancestrais). O Outro é uma categoria que envolve uma certa genealogia, compreende nossos mitos e constelações familiares, discursos culturais que no atravessam, ou seja, tudo isso que tira a gente de um entendimento mais familiarista do que seria o complexo de édipo.
Esses três tempos do complexo de édipo, lidos pelo Lacan, vão envolver três entradas da noção de falta.
Melanie Klein e os ingleses desenvolveram uma teoria muito interessante chamada teoria das relações de objeto. Para Melanie Klein haveria duas posições básicas para nossa relações com os objetos: a) Uma posição esquizoparanóide em que a gente cinde, projeta e aquilo que foi projetado volta persecutoriamente sobre nós. b) E a posição depressiva, que no fundo integra as partes fragmentadas ou cindidas do objeto e do Outro uma experiência envolvendo perda e simbolização. Lacan achava essa ideia muito interessante mas ele discutia o estatuto do objeto no interior dessas proposições. Ele dizia que a relação de objeto em psicanálise é principalmente relação com a falta de objeto. E essa falta de objeto não aparece toda de uma vez. Ela vai sendo subjetivada pela criança e nesse processo de subjetivação ela vai se tornando um sujeito.
No primeiro momento a relação com a falta está determinada pelo que o Lacan diz Frustação. A frustação é a falta no imaginário, falta do objeto imaginário, e ela é processada, o agente dessa falta é a mãe simbólica. E o objeto dessa falta é o objeto real. Ilustrando: a criança muito pequena em que diante da indisponibilidade de um objeto ela supõe que este outro doador, este que pode então significar o seu grito, que pode dar nome para sua aflição, mas também esse que toca no seu corpo, que o acalenta, que o aconhega, todos esses gestos que envolvem então o posicionamento da criança em um determinado lugar estão baseados e vão engendrando a realização de que este outro além de ser uma imagem, uma pessoa, ele é um outro simbólico, ele representa o outro simbólico para essa criança. Mas ele incide nessa criança frustrando ela, dizendo que e fazendo que ela experiencie que existe um objeto, real, mas a mãe não o dá, e a mãe não o dá em presença, naquela hora, porque de certa forma esse objeto perdido está radicalmente perdido e não pode ser recuperado. Aquela primeira mamada, aquela primeira experiência de satisfação, é alucinada pela criança como uma ilação de desejo, um retorno a esse traço mnêmico de satisfação. Quando a mãe oferece o leite, oferece a sua presença, esse segundo encontro já não é o primeiro, e ele sempre deixa um resíduo, sempre deixa um resto, ele sempre é frustrante. A primeira experiência da falta, experiência imaginária, nos coloca diante da frustração e nos coloca diante de um outro que é sumamente caprichoso porque dele tudo depende, ele é unipotente, e esse modo de relação está articulado com a frustração. Isso reaparecerá no adulto: há muitos modos de relação com o outro que estão simplesmente baseado nisso, que o outro tem, pode, é... e eu não sou, e porque eu não sou é porque o outro não me deu, não me fez, não me coloca o objeto real que ele possui. Esse é um primeiro engano, engodo, próprio da dimensão imaginária.
Esse engodo é posto em colapso com a passagem ao segundo tempo do édipo, com a mudança do estatuto da falta, em que a gente vai passar da frustração para a privação. A privação coloca em cena um objeto imaginário mas um agente que é o pai imaginário. Isso corresponde no drama edipiano àquele momento em que a criança passa por uma mutação: vinha bem, rindo, sorridente, de repente volta a urinar na cama, quer a chupeta novamente, e, principalmente, começa a ter pesadelos, acorda de noite, desenvolve medos estranhos. A criança começa a se dar conta de que este outro imediato (outro materno, função materna) tem limites, não é completo, não é todo, e daí ela hipotetisa e intui que existe um outro que seria "o outro do outro". Seria aquele que castra, "que limita essa que cuida de mim". "Então se ela não me dá o objeto que eu quero, é porque ele não deixa. Só que ele não sei direito quem é, qual sua imagem, do que ele é feito" (deslocamento do supremo poder de um para o outro). E por isso que surgem as fobias e os pânicos (tentativas de dar forma ao pai imaginário - caso do pequeno Hans ao ter medo do Cavalo-pai, transformar o cavalo de que tinha medo com o suporte/suplemento para o pai na sua função enquanto privador, privando a mãe de incorporar o seu produto, priva a criança, faz com que a criança seja introduzida nessa hipótese de uma falta real).
Então para distinguir: a frustração é a falta de um objeto imaginário ("sei o que está me faltando") enquanto a privação envolve uma deflação desse saber ("eu não sei exatemente o que me falta ou do que é composto esse objeto que representa e dá suporte à minha falta"). Daí essa associação da privação com a angústia: esse é o objeto que o neurótico está aderido, não querendo ceder esse objeto para o outro, esse objeto que causa angústia mas ao mesmo tempo é fonte fundamental de gozo e satisfação inconsciente. Esse segundo tempo do encontro com a falta, a privação, engendra um outro modo de relações com o mundo. Ele permite que a criança comece a dialetizar sua relação com os estrangeiros, com o outro, com a sua própria angústia, com a própria criação de imagens, momento em que ela vai começar a se perguntar "mas afinal o que que é o real?", "o que que é imaginação?", "o que que é minha fantasia, e o que que é dado?", "o que é a verdade que os outros me dizem, e o que que é a mentira que eles me contam?", "o que é isso que acontece no meu corpo mas que muitas vezes não tem nome, não tem palavra, me toma como uma experiência desagradável?", tudo isso faz parte da privação.
O terceiro momento (momento em que haverá a metáfora com o Nome-do-Pai), em que essas duas relações, minha relação com minha mãe, enquanto função materna, e a relação com o pai, enquanto Nome, elas vão se juntar formando uma metáfora. Esse momento de juntura ele vai dar origem a uma nova reposicionamento do pai (ele vai deixar de ser o pai imaginário que tem toda a potência, o pai ditador/ameaçador) e ele vai passar a condição de pai real. E, ao mesmo tempo, a criança vai se dar conta de que o falo, ele mesmo, não pertence a ninguém, e ninguém é o falo.
A metáfora com o Nome-do-Pai permite entender que a falta é operador dos desejos humanos enquanto trocas. A falta é o que permite que o desejo se desloque, que o desejo seja sempre o desejo de outra coisa. Que ele não se afunde em um objeto. Que ele não se aliene em um objeto. Que o próprio desejo do sujeto não se aliene no desejo do outro pura e simplesmente. Tudo isso depende da castração nos seus efeitos separadores, ou seja, nos seus efeitos de subjetivação do desejo, de filiação, de identificação, em que a criança possa dizer: "olha, eu perdi esses objetos (este pai, esta mãe) mas eu posso encontrar equivalentes formais disso. Eu posso ter meu próprio desejo. Eu perdi meu Eu-Ideal, mas eu ganhei meu Ideal-de-Eu. A partir daqui eu levo uma experiência que é um orientador, um regulador para meus desejos (que são meus ideias: ideais simbólicos que geram efeitos imaginários). A partir daqui eu ganho a instalação de uma lei que já não me aparece como exterior, que vem de fora, representada pelo pai, médico, policial, pela figura que tem o poder. Mas eu então interiorizo a lei" (que pode aparecer nessa figura, às vezes patológica, do Super-Ego).
Então a castração é simplesmente um operador para nossas relações humanas. Quando nosso desejo se aliena: é porque nós não queremos saber da castração. Quando queremos trocar o desejo pelo amor: é porque nós não queremos saber da castração. Quando nós nos relacionamos com a lei de uma maneira personalizada, imaginária: é porque nós não queremos saber da castração. A castração é esse limite, essa falta, que nos constitui como sujeitos capazes de desejo.
Bibliografia recomendada: castração X privação X frustração, ver Seminário 4 (as relações de objeto) e 5 (as formações do inconsciente) de Jacques Lacan, que fazem essa releitura do complexo de édipo em Freud a partir da Teoria da Linguagem e do Desejo.
Acredito que ele tenha trocado os nome "frustração" por "privação", apesar dos conceitos estarem corretos. A privação antecede a frustração, diz respeito a satisfação de uma necessidade...
O fato das pessoas se relacionarem ou forçarem um relacionamento depois de um tempo pode incluir o medo da perda do que a pessoa oferece no caso sexo etc?
@@katiaflores7929"É um erro não partir da frustração, que é o verdadeiro centro quando se trata de situar as relações primitivas da criança" Sem. IV, p. 66
@@andrejjovicevic7433 foi exatamente o q pensei. Partir da frustração e do imaginário
Dunker, a sua doação como mestre têm ampliado o conhecimento de muitos sobre a psicanálise. Parabéns pela maravilhosa explicação!
Professor Christian Dunker, seus vídeos, suas explicações claras, simples, bem humoradas acerca de temas complexos são um alento diante de tantas desinformacoes e falta de conteúdos de tantos canais que pululam nessa plataforma!
Parabéns e um grande abraço.
Que professor fantástico. explica de uma maneira extraordinária.
muito fofo o tapetinho do mouse, adorei
Siiim 😁❤
Prof. Christian, parabéns novamente pela generosidade.
Penso que este falando nIsso está entre os que mais me tocaram. Reconheço que ainda não é fácil acompanhar (talvez nunca o seja), pois como psicanalista ainda estou me aproximando do pensamento lacaniano. Todos os seus vídeos que eu vi até agora foram forte estímulos para o aprofundamento.
Obrigado
Professor, muito agradecida! Amo o seu canal! Parabéns pelo trabalho! 😍
Qts informações Valiosas. Obrigada Doutor..além de gênio. É Palmeirense 🙏😉🌏❤
Christian, vc como meu imaginário do Outro... não tenho palavras para agradecer seu carinho em tornar disponível e acessível seu conhecimento... sua ajuda (tentativa) em nos ajudar a simbolizar (tentativa). Uma vez mais: OBRIGADO!
Muito interessante este assunto,amplo e a privação/frustração esta´relacionada com conflitos graves que podem muito bem serem confrontados e liberados.Ciència muito bonita a psicologia,essencial conhece a ti- mesmo.
Professor Christian Dunker, obrigado pela excelente elucidação!
Melhor canal que possa existir no TH-cam! Parabéns professor! 👏🏻👏🏻👏🏻
Muito Bom!! Citei sua obra, Raízes da Intolerância, na minha redação 2016. Genial!!
Ahh fala sério,explica muitooooo 👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼
Excelente pergunta e melhor ainda a resposta. Obrigado!
Gosto do seu trabalho como divulgador da psicanálise
Parabéns pelo canal; acompanho todos os vídeos.
Você poderia falar sobre a relação dos adolescentes com o álcool? É a droga mais disponível, há uma pressão social tremenda pro abuso etc e como isso se relaciona às questões do sujeito com a família, com as proibições e transgressões, com desejo, libido etc e quais as atitudes comuns tomadas pelos pais para lidar com a situação são menos ou mais adequadas para a superação de um ciclo vicioso.
Obrigado!
👏👏👏👏 Um dos seus melhores vídeos! Muito bom!
Christian, seria possível desenvolver e estabelecer uma relação entre a intensificação dos sintomas sociais e o declínio de autoridade nos dias atuais, devido a mudanças nas configurações subjetivas decorrentes das novas estruturas familiares
(horizontais e não mais verticais , de certa forma) e se isso tem relação com os discursos de Lacan.
Olá professor Dunker!
🏛🛋🕎♆ Gostaria que você comentasse sobre a ética do desejo e em que isso poderia afetar nas escolhas em nossas vidas. As escolhas sobre aquilo que se ama ou aquilo que se deseja por exemplo. Obg!!!
Obrigada!
Mestre maravilhosa explicação !!!😘🌹
Oi, Dunker. Gosto muito de seus vídeos e os acompanho um a um. Seria possível você fazer um vídeo explicando o estádio do espelho, assim como vez com o grafo do desejo. Parabéns pelo trabalho maravilhoso que está fazendo, que é um movimento de tornar a psicanálise acessível. Grande abraço,
Christian, obrigado pelos vídeos. Você poderia falar sobre as críticas de Deleuze e Guattari à psicanálise? Abraço!
Prof. Christian, parabéns pelos vídeos! Sigo acompanhando o canal que é uma ótima ferramenta para complementar os estudos! Poderia falar sobre as psicoses ordinárias e as formas de sofrimento contemporâneas?
Fantástico!! Obrigada
Muito obrigado
Excelente explicação!
Muito clara e sintética.
Muito didático. Parabéns!
Boa tarde sofro de transtorno bipolar e à 2 anos atrás comecei um tratamento com um psiquiatra e dois meses despois me descubre apaixonada por ele, só que estava esperando emagrecer kkk para contar para ele, quando tomei coragem de contar não o encontrei mais pois ele teve que ir embora aí cai em depressão outra vez.
Show, muito bom! Esclarecedor! Valeu!
No Seminário 6, Lacan retoma esses conceitos também.
christian u nice keep going
Olá Christian Dunker, seus vídeos são fantásticos. Assisto constantemente e compartilho com colegas da APC em Curitiba, onde sou psicanalista sócia.
Poderia fazer um vídeo sobre "Angústia na contemporaneidade".
A angústia sinaliza a emergência do desejo do Outro, entendido no registro do Real. Assim, de que modo a inconsistência do Outro pode levar o sujeito a perder sua condição de entidade simbólica, fazendo com que este entre em angústia?
Desde já agradeço! Grande abraço
Que vídeo bom! Ajudou muito nos meus estudos :)
Maravilha. Esclarecedor.
Ola professor Dunker
Gostaria que você comentasse sobre o filme ''LEON O PROFISSIONAL'' se possivel, é uma obra muito interessante, desde já obrigado, parabéns pelos videos, explicativos diretos e claros que sempre produz.
gostei muito da abrangência no final, quando tudo se articula como "efeitos".
Christian, como podemos pensar a direção da cura para casos de "dependência afetiva"? essa pergunta toca as relações de certas mulheres com o "homem-devastação", a violência doméstica, e outras queixas amorosas. Muito obrigado, abraço!
Christian, a queixa de sofrimento - geralmente da posição feminina diante da relação construída ao lado de um homem machista - é a repetição de um gozo, fantasia e busca da satisfação de desejo inconsciente e/ou embrulhos do desejo? Abraço e obrigada por aulas e esclarecimentos que tanto desejamos.
Adoro seus videos, professor você poderia falar da questão do desejo no anti édipo do deleuze e guattari e o desejo para lacan? vejo que você sempre tem na sua mesa o livro do deleuze e do guattari do anti edipo. abraços
GÊNIO 👏👏👏👏💙
Olá prof. Como o conceito de "deprivation" de Winnicott pode complementar esta posição? visto que como dizia André Green, demais é demais.. ou seja, há crianças cuja falta, ausência e separação foram demais.. não constitutivas.. mas alienanantes.
Queria uma aula mais comprida😊
Muito bom
Oi Professor, gostaria de saber se tu poderias falar sobre os tipos de resistência possíveis em Freud , especialmente a resistência do recalcamento. Obrigada ! Abraço, Louise (Porto Alegre RS)
Super
Olá professor, acompanho sempre o canal e aprecio muito. Recentemente vi um evento cujo nome era Psicinálise e misoginia - história e histeria. O que o senhor pensa disso? A psicanálise é misógina?
Lindo
E esse Anti Edipo na mesa nesse vídeo hmm haha Chiste, grande professor haha
Ohhhhh
Eu achava que o primeiro momento é de privação, depois frustração, depois castração... Pq a privação o objeto está ali e não está acessível... Já a frustração o objeto está acessível mas não disponível..
Ola professor. Tenho uma dúvida a respeito de pessoas surdas. No caso das estruturas, sendo um surdo com esquizofrenia, que tipo de "voz" ele escutaria? De linguagem de sinais?ou uma voz que no senso comum é da consciência? Certa vez em um trabalho que estive atendi uma adolescente surda, meu trabalho era resgatar a história da adolescente que estava perdida em SP, ela tinha certo grau de letramento,mas era notável que na escrita era ausente o uso de artigo e adjunto, em parte foi uma comunicação como o jogo "imagem e ação ".
Então, como se da a alucinações em pessoas surdas?
O que faz uma criança sentir ódio por uma pessoa que o rejeita e esse sentimento se converte em desejos sexuais. sentindo uma paixão ou "amor" por aquele que o rejeitou ?
Olá Christian, interessante seu modo de transmitir conceitos da psicanálise em redes sociais. Porém, gostaria de alertar que você cometeu alguns erros quanto aos três tempos da falta de objeto: o correto é privação, frustração e castração e, não como você mencionou, frustração, privação e castração, erro que lhe fez atribuir à frustração algumas questões referentes à privação. Pode parecer um preciosismo teórico, mas como na psicanálise a teoria está sempre muito atrelada à prática, é importante ter o cuidado com a transmissão do saber que aí se coloca.
Abraço.
Toda razão minha cara, vamos colocar uma nota corrigindo o erro. É isso mesmo, agradeço sua lembrança. Abraço
Só uma última observação: seria minha cara, eu sou menina ;)
Ok Hevellyn, agradeço suas correções.
Muito bons seus vídeos. Fiquei com uma dúvida só, a respeito da castração: Caso a criança não passe pelo processo de castração de forma completa e saudável, é possível que isso aconteça de alguma forma na vida adulta?
Quando a criança não passa pelo processo na infância ela sofre as consequências disso na adolescência, por isso muito adolescentes vivem momentos de crises e surtos.
Grande professor, tenho uma questão: os sonhos podem responder questões ainda não esclarecidas para a consciência? Ótimo canal!
Pra que perguntar coisas de que já sabe a resposta?
@@juanterenciani7247 fiz essa questão a 4 anos atrás kkk. Hoje conheço bem mais Lacan. Mas quando fiz a pergunta estava me referindo a Jung: para Jung os sonhos são capazes de uma comunicação com o consciente, é um outro que fala de modo independente da consciência. No caso de Lacan a resposta disso vai ser dada pela estrutura da linguagem e do processo de significação. Mas em resumo: não era uma pergunta da qual eu já sabia a resposta...kkk
Castraram o último segundinho da fala do Professor... Rs
Não entendi nada...
Olá professor. O senhor poderia falar um pouco sobre a direção de tratamento na esquizofrenia, tratando sobre o processo de paranoização a luz de um caso clinico? Um abraço.
Olá, Christian! Gostaria que você comentasse acerca da "teoria do desejo mimético" (triangular) de René Girard à luz da psicanálise. Obrigado!
Interessante o ato falho em dizer: “o pai real” em lugar do “pai imaginário” rsrs
Professor, não sei se minha opinião lhe interessa - certamente não - , mas seu linguajar é um pouco hermético.