ACOMPANHE A LEITURA 💖: Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou para a minha infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com um véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia que se segue ao carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa ia se aproximando, como explicar a agitação íntima que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu. No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem. Duas coisas preciosas eu ganhava então e economizava-as com avareza para durarem os três dias: um lança-perfume e um saco de confete. Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz. E as máscaras? Eu tinha medo mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim. Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente, ninguém em casa tinha cabeça para carnaval de criança. Mas eu pedia a uma de minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me causavam tanto desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos frisados pelo menos durante três dias por ano. Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia ao meu sonho intenso de ser uma moça - eu mal podia esperar pela saída de uma infância vulnerável - e pintava minha boca de batom bem forte, passando também ruge nas minhas faces. Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice. Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir pouco. É que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e o nome da fantasia era no figurino Rosa. Para isso comprara folhas e folhas de papel crepom cor-de-rosa, com as quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de uma flor. Boquiaberta, eu assistia pouco A pouco à fantasia tomando forma e se criando. Embora de pétalas o papel crepom nem de longe lembrasse, eu pensava seriamente que era uma das fantasias mais belas que jamais vira. Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel crepom, e muito. E a mãe de minha amiga - talvez atendendo a meu apelo mudo, ao meu mudo desespero de inveja, ou talvez por pura bondade, já que sobrara papel - resolveu fazer para mim também uma fantasia de rosa com o que restara de material. Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma. Até os preparativos já me deixavam tonta de felicidade. Nunca me sentira tão ocupada: minuciosamente, minha amiga e eu calculávamos tudo, embaixo da fantasia usaríamos combinação, pois se chovesse e a fantasia se derretesse pelo menos estaríamos de algum modo vestidas - à ideia de uma chuva que de repente nos deixasse, nos nossos pudores femininos de oito anos, de combinação na rua, morríamos previamente de vergonha - mas ah! Deus nos ajudaria! não choveria! Quanto ao fato de minha fantasia só existir por causa das sobras de outra, engoli com alguma dor meu orgulho que sempre fora feroz, e aceitei humilde o que o destino me dava de esmola. Mas por que exatamente aquele carnaval, o único de fantasia, teve que ser tão melancólico? De manhã cedo no domingo eu já estava de cabelos enrolados para que até de tarde o frisado pegasse bem. Mas os minutos não passavam, de tanta ansiedade. Enfim, enfim! chegaram três horas da tarde: com cuidado para não rasgar o papel, eu me vesti de rosa. Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei. No entanto essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um destino é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge - minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa - mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil - fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros me espantava. Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me penteou e pintou-me. Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas histórias que eu havia lido sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas, eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas com remorso lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria. Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para mim significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos já lisos, de confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.
Os contos de Clarice fazem eu me sentir íntima dela... fui uma criança muito introvertida, só tinha a literatura, não possuía amigos, e como ela sempre trás em seus personagens, eu não possuía uma felicidade que não fosse clandestina. Os contos dela tocam minha alma, pois me fazem lembrar de minha infância solitária, me fazem lembrar de quem sou.
Tseng, carnaval é alegria e, para ela, naquele momento, parecia não ser permitida a alegria por causa da doença da mãe. Ela revela várias contrastes de sentimentos. Sentimentos: bons e maus ( orgulho, inveja). " a alegria dos outros me espantava" "alguma coisa morrera em mim", "na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre, e de novo eu morria" "Eu não era uma rosa, era um palhaço" "Eu era, sim, uma rosa". Ninguém tinha tempo para ela. Ela era uma menina de oito anos e era deixada de lado por causa das preocupações financeiras da família e a doença da mãe. Assim, ela revela que não perdoava o destino por causa disso. Sente que algo lhe era roubado.
ACOMPANHE A LEITURA 💖:
Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou para a
minha infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam
despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com um véu cobrindo a
cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia que se segue ao
carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa ia se aproximando, como
explicar a agitação íntima que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de
botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim
explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem
a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.
No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile
infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até
umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos,
olhando ávida os outros se divertirem. Duas coisas preciosas eu ganhava então e
economizava-as com avareza para durarem os três dias: um lança-perfume e um
saco de confete. Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de
coração escuro ao constatar que, mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era
de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz.
E as máscaras? Eu tinha medo mas era um medo vital e necessário porque vinha de
encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse
uma espécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava
comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior,
que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu
mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim.
Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente, ninguém
em casa tinha cabeça para carnaval de criança. Mas eu pedia a uma de minhas irmãs
para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me causavam tanto desgosto e tinha
então a vaidade de possuir cabelos frisados pelo menos durante três dias por ano.
Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia ao meu sonho intenso de ser uma moça -
eu mal podia esperar pela saída de uma infância vulnerável - e pintava minha boca
de batom bem forte, passando também ruge nas minhas faces. Então eu me sentia
bonita e feminina, eu escapava da meninice.
Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não conseguia
acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir pouco. É que a mãe
de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e o nome da fantasia era no figurino
Rosa. Para isso comprara folhas e folhas de papel crepom cor-de-rosa, com as quais,
suponho, pretendia imitar as pétalas de uma flor. Boquiaberta, eu assistia pouco A pouco à fantasia tomando forma e se criando. Embora de pétalas o papel crepom
nem de longe lembrasse, eu pensava seriamente que era uma das fantasias mais
belas que jamais vira.
Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel crepom, e
muito. E a mãe de minha amiga - talvez atendendo a meu apelo mudo, ao meu
mudo desespero de inveja, ou talvez por pura bondade, já que sobrara papel -
resolveu fazer para mim também uma fantasia de rosa com o que restara de
material. Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o que sempre
quisera: ia ser outra que não eu mesma.
Até os preparativos já me deixavam tonta de felicidade. Nunca me sentira tão
ocupada: minuciosamente, minha amiga e eu calculávamos tudo, embaixo da
fantasia usaríamos combinação, pois se chovesse e a fantasia se derretesse pelo
menos estaríamos de algum modo vestidas - à ideia de uma chuva que de repente
nos deixasse, nos nossos pudores femininos de oito anos, de combinação na rua,
morríamos previamente de vergonha - mas ah! Deus nos ajudaria! não choveria!
Quanto ao fato de minha fantasia só existir por causa das sobras de outra, engoli
com alguma dor meu orgulho que sempre fora feroz, e aceitei humilde o que o
destino me dava de esmola.
Mas por que exatamente aquele carnaval, o único de fantasia, teve que ser tão
melancólico? De manhã cedo no domingo eu já estava de cabelos enrolados para
que até de tarde o frisado pegasse bem. Mas os minutos não passavam, de tanta
ansiedade. Enfim, enfim! chegaram três horas da tarde: com cuidado para não
rasgar o papel, eu me vesti de rosa.
Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei. No entanto
essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um destino é irracional? É
impiedoso. Quando eu estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os
cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge - minha mãe de súbito piorou muito de
saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa
um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa - mas o rosto ainda nu não
tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil - fui correndo,
correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A
alegria dos outros me espantava.
Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me penteou e
pintou-me. Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas histórias que eu
havia lido sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas, eu fora
desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina. Desci até a
rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados.
Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas com remorso
lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria.
Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é porque tanto
precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para mim significava um
rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa mistura de carinho,
grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos já lisos, de confete: por
um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha
de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido:
eu era, sim, uma rosa.
Eu chorei enquanto ouvia uauahaha por me identificar e muito com essa garotinha.
Os contos de Clarice fazem eu me sentir íntima dela... fui uma criança muito introvertida, só tinha a literatura, não possuía amigos, e como ela sempre trás em seus personagens, eu não possuía uma felicidade que não fosse clandestina. Os contos dela tocam minha alma, pois me fazem lembrar de minha infância solitária, me fazem lembrar de quem sou.
Amo Clarice e esse Recife poético de sua infância
Quanto sentimento por parte da leitora. Consigo me emocionar junto com ela e com a Clarice
aracy balabanian. enorme atriz.
Faz muita falta...@@dincast
Amo Clarice e as leituras feitas pela Aracy.
Que linda Narração e que lindo conto!
Poxa Aracy vc é massa , faça mais desses áudios
Linda narração divina Aracy.
Maravilha! È retornar no meu Recife, amei
Grande Aracy e Grande Clarice
Clarice é viceral. Em muitos contos parece que conta de mim.
Muito bom!!
Lindo lindo lindo
Bela poesia
Bela narração.
MARAVILHOSO
Eu sou esse conto e sinto muito
Belissimo-conto
dmais
O que voces entenderam?
Tseng, carnaval é alegria e, para ela, naquele momento, parecia não ser permitida a alegria por causa da doença da mãe. Ela revela várias contrastes de sentimentos. Sentimentos: bons e maus ( orgulho, inveja). " a alegria dos outros me espantava" "alguma coisa morrera em mim", "na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre, e de novo eu morria" "Eu não era uma rosa, era um palhaço" "Eu era, sim, uma rosa". Ninguém tinha tempo para ela. Ela era uma menina de oito anos e era deixada de lado por causa das preocupações financeiras da família e a doença da mãe. Assim, ela revela que não perdoava o destino por causa disso. Sente que algo lhe era roubado.
Amo Clarice e as leituras feitas pela Aracy.